terça-feira, 11 de novembro de 2008

O Presidente do Vizinho é Mais Negro

O resultado das eleições nos Estados Unidos é resultado de uma campanha antiga. A vitória de Obama é a vitória de ideais centenários. Há mais de 200 anos se defende a igualdade entre as pessoas e, mesmo assim, ainda há muito que avançar na construção de sistemas eleitorais, jurídicos e políticos, na construção de famílias, comunidades e sociedades que promovem e protegem esses ideais. A vitória de Obama é uma vitória histórica da democracia – por meio de sua continuidade e de seu aprimoramento – e dos valores igualitários.

O aprofundamento na luta por igualdade racial é resultado de processos longos e dolorosos. Nos Estados Unidos, a construção democrática ganhou força e forma no processo de elaboração da declaração de independência. Foram mais 20 anos até que a escravidão fosse proibida. O que vemos hoje, nos Estados Unidos, é resultado especialmente do Movimento dos Direitos Civis, de pouco mais de 40 anos, com líderes célebres e assassinados como Martin Luther King Jr. e Malcom X.

No Brasil, há 120 anos abolimos a escravidão. 100 anos depois promulgamos uma Constituição democrática garantindo igualdade entre raças, gênero e credos. No ano seguinte, racismo virou crime por força de lei. Todo dia 13 de maio, celebramos o sucesso do movimento abolicionista com a Lei Áurea. Em 20 de novembro, o Dia da Consciência Negra relembra a luta e morte de Zumbi como símbolos da resistência e combatividade do Movimento Negro. Mas demoramos 115 anos desde a Lei Áurea para criarmos a Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial com status de Ministério no Governo Federal.

Nossa incompetência para tratar a desigualdade racial reforça mecanismos de exclusão que deixam cicatrizes fortes na nossa sociedade. A taxa de analfabetismo das pessoas com 15 anos de idade ou mais é mais de duas vezes e meia maior entre negros que entre brancos (21% de negros e 8,3% de brancos). A média de anos de estudo das pessoas com 10 anos de idade ou mais é cerca de três anos e meio para negros e de quase seis anos para os brancos. Enquanto 22,7% dos brancos com 18 anos ou mais concluíram o ensino médio, somente 13% dos negros o fizeram. Os números de ensino superior, emprego, salários, saúde – não por acaso – seguem as mesmas tendências. Nos Estados Unidos, os números são bem melhores mas estão longe do ideal e expõem cicatrizes parecidas.

Preconceito, pobreza e discriminação racial se misturam nessas cicatrizes. Alexandre Garcia, da Globo, fez questão de dizer que Lula, “retirante nordestino”, não pode ser comparado a Obama “elite intelectual, advogado de Harvard”. O pai de Obama, se me permitem tal liberdade, era “retirante do Quênia, África”. Mas a questão não era racial? Ou sobre a eleição de um representante de minoria? Vai ver o jornalista acredita que curso superior muda a cor da pele de uma pessoa – quase dizendo que “é o primeiro presidente negro, mas é advogado”. Ou não percebeu algumas relações importantes entre pobreza, raça e democracia. Na canção Haiti, Caetano e Gil usam a expressão “quase pretos de tão pobres” numa letra que mexe em muitas das feridas que nós, brasileiros, insistimos em não tratar. O mérito no caso Obama, além da raça, religião ou gênero, está na eleição de um representante da minoria, na vitória da democracia.

O que podemos esperar com a eleição do primeiro presidente negro dos Estados Unidos deveria refletir nossa forma de ver o mundo. Se é bom para os americanos terem um presidente negro, devemos pensar sobre como tratamos os negros em nosso país, em nosso estado, em nossa cidade. A eleição de Bachelet como primeira presidenta do Chile e a de Morales como primeiro presidente indígena da Bolívia são exemplos importantes de mudança a partir da vontade dos eleitores. Olhando o resultado de nossas eleições, realizadas há apenas um mês, veremos refletida nossa forma de ver negros, mulheres e indígenas na política e no Brasil.

Será que comemoramos a eleição de Obama, com quem nos identificamos, porque somos todos “quase pretos de tão pobres”? Obama ofereceu esperança e se apresentou como “a mudança de que precisamos”. Será que estamos trabalhando para termos no Brasil a igualdade, diversidade e democracia que aplaudimos nos Estados Unidos? Não podemos correr o risco de acharmos que a grama do vizinho é mais verde. Ou melhor, de acharmos que o presidente deles é mais negro.

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