Por Joanas Chagas
Minha bisavó era mãe. Mãe da minha avó, que também é mãe, mãe da minha mãe. Três mães, três mulheres.
Minha bisavó viveu no início do século passado, era brasileira, baiana. Era Maria. A bisa Maria que morreu aos quase 100 anos, sem um fio de cabelo branco (genes que não herdei, pois já encontro em mim alguns, prováveis presentes do UNIFEM...). Maria nasceu prometida, casou-se aos 15 anos com um homem mais velho que mal conhecia. Teve vários filhos, que nem sei quantos... Maria não sabia nem ler, nem escrever. Era de família simples, não precisava de educação para viver. Sabia costurar e bordar, cozinhar, limpar, lavar e passar. Sabia ficar calada. Maria ainda não sabia que era gente, tão gente quanto seu marido, meu bisavô. Não sabia que podia ser cidadã, que podia ter direitos, direitos iguais, que podia participar das decisões políticas de sua comunidade e de seu país. Naquela época, informação era coisa só de homem, educação era coisa só de homem, democracia era coisa só de homem.
Minha avó Joselita, filha de Maria, já nasceu em outros tempos. Lá pelos anos 30, em meio à efervescência de novos tempos que se anunciavam. Tempos de conquista do direito da mulher a votar e ser votada. Minha avó aprendeu a ler e a escrever, estudou o primário, e desde cedo ajudava na venda do pai e cuidava dos irmãos mais novos. Também aprendeu a costurar e bordar, a cozinhar, a cuidar da casa, mas já começava a participar um pouco mais ativamente da vida pública. Aos 18, foi pedida em casamento pelo jovem jornalista que todos os dias passava sorrindo por sua janela. Casou-se. Teve 5 filhos. Suas curiosidades de mundo, sua sede por conhecer e aprender, teve que transferi-las aos filhos, que cresceram com os olhos grandes, afoitos. Joselita, vovó Zelita, como a chamo, fez da educação das filhas e do filho uma prioridade e plantou em cada um deles a semente do abrir-se ao mundo. Aos trinta e poucos descobriu que seu marido tinha outra família, prática comum daquela época (e diria que ainda da nossa também...). Em que pese toda a pressão cultural e familiar a que estava submetida, Zelita decidiu separar-se e teve que lutar por fazer valer esse direito. Hoje vive só, mas feliz, com seus bordados e suas receitas da Bahia.
Minha mãe, Adelaide, cresceu nos anos 60 e 70, anos de ruptura e de rebeldia. De ditadura. De revolução sexual. Cresceu com aqueles olhos afoitos e curiosos que minha avó lhe emprestara, envolvida pelo mundo de notícias que o pai trazia para casa todos os dias e pelo mundo de sonhos roubados das histórias que sua mãe lhe contava. Minha mãe já não foi mulher de um homem só e escolheu o homem com quem quis casar. Começou a estudar jornalismo, paixão emprestada do pai, mas acabou abandonando seu desejo para realizar o de seu futuro marido arquiteto. Com ele veio a Brasília (aos 20 anos, grávida de mim). Sem grana, começando a vida, dividia seu tempo entre trabalho, estudos e o cuidar das duas filhas, que a acompanhavam pelos espaços públicos que ela ocupava. Participou – comigo e com minha irmã a tiracolo – das lutas pelas diretas já; era militante do PT (e me lembro de ter perdido meu primeiro dente pintando estrelas vermelhas nos muros das cidades satélites do DF). Minha mãe se divorciou do meu pai depois de uma briga por uma escova de dentes jogada na pia. Acabara o amor. Não sofreu tantas pressões – além da de ter que cuidar sozinha das duas filhas pequenas. Apaixonou-se algumas outras vezes e voltou a se casar. Diz minha mãe que ter tido filhas aos vinte e poucos foi bom porque hoje ela pode curtir a vida que na juventude não pode aproveitar. Hoje ela está na Inglaterra, estudando inglês. Passou o dia das mães por lá, fazendo-se talvez menos mãe, mas mais mulher. E me fazendo mais mulher também por causa disso.
Eu ainda não sou mãe, e não sei se um dia vou querer sê-lo. Optei por não casar, mas sim por partilhar minha vida com o homem que escolhi. Escuto muito por aí uma conversa de que as mulheres hoje são infelizes, ou porque não se casaram, ou porque se divorciaram, ou porque acabaram por decidir-se a não ter filhos. Eu sou feliz. Minhas amigas também. Aos 26 anos, ainda não fui madrinha de nenhum casamento, de nenhuma criança. Não sei bordar, gosto de cozinhar (apesar de que lá em casa não sou eu quem mais cozinha), detesto limpar, lavar e passar. Quando saí da casa da minha mãe para morar sozinha ganhei dela não uma caixa de costura, mas uma caixa de ferramentas. Se eu um dia decidir ter filhos, vou querer fazê-lo com um homem que partilhe comigo as responsabilidades dessa escolha (que, diga-se de passagem, deve poder ser sempre uma escolha). Responsabilidade financeira, afetiva, de tempo, de espaço, de desejos, de concessões. Se um dia decidir ser mãe, ensinarei a minhas filhas e a meus filhos que antes de sermos qualquer coisa, temos que ser nós mesmas, na individualidade e na coletividade que nos definem. Cidadãs e cidadãos, mulheres e homens, gente. Gente com diferença, mas com direitos iguais. Gente que se respeita, que se permite ser e querer. Gente que vê nas mães as mulheres que elas no fundo são, e não o contrário.
A todas as mulheres mães, espero que tenham tido um feliz dia.
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