Estava justo refletindo sobre essa cultura de “as coisas são assim mesmo; sempre foi assim e sempre será”; e, a pior de todas, “Patrocínio é assim, você ainda vai aprender” quando mais uma vez me encontrei com as idéias do Paulo Brabo. O texto não traduz exatamente o que eu escreveria. Na verdade, discordo da maior parte do que ele escreveu. Mas seu incômodo com nossa “cordeirice” expressa em alto e bom tom minha incapacidade em entender algumas posturas que testemunho por aqui. Mais do que se acomodar, muitos se dedicam a repetir e reforçar conceitos, valores, idéias e padrões de comportamento que nos impedem de nos desenvolvermos como pessoas e como sociedade.
Aqui, publico na íntegra as "Anotações para um romance político" por Paulo Brabo:
"– Todos os sistemas com mais de um ou dois indivíduos – disse o homem de sobretudo – são auto-organizatórios. – Isso quer dizer que todos os sistemas tendem a proteger o grupo em detrimento do indivíduo. Coloque cinqüenta desconhecidos num lugar confinado e em dois dias você terá facções, líderes, simpatias, lealdades, distribuição de tarefas, alvos, legislações e sistemas de governo: auto-organização. Em alguma medida o mesmo acontece com galinhas, macacos e paramécios. Os organismos se ordenam espontaneamente em superorganismos: rebanhos ou multidões.
– O problema com as multidões é que são forças da natureza. Ninguém pode controlá-las. Com uma pessoa você pode conversar, como estamos fazendo. Uma multidão você só pode aplacar.
– A presente ilusão requer que a democracia representa a vitória final dos direitos do indivíduo e do livre-arbítrio. O que ninguém parece ser capaz de enxergar é que a aplicação da democracia, mesmo na mais inocente das formas, conduz necessariamente à tirania do coletivo. Vivemos na ilusão de que ouvimos e louvamos a liberdade individual, mas somos conduzidos pelos caprichos da multidão.
– E quem foi mesmo que disse que a loucura é a exceção no indivíduo mas a regra na multidão? Nietzsche?
– Fato é que de nada serve a sobriedade individual, porque o tirano coletivo é guiado pelo inconsciente. A democracia é o governo de loucos, está vendo?
– A monarquia e o totalitarismo são arriscados, mas na democracia não resta nem ao menos a possibilidade de um rei sensato.
– Um exemplo da insensatez da multidão: se o capricho coletivo vigente é a segurança, o que acontece é que todos submetem-se voluntariamente à vigilância. Você não vê? A vigilância é tida como inaceitável num governo totalitário, na linha do 1984 de Orwell, mas as pessoas se sujeitam como cordeirinhos (como um rebanho!) a toda e qualquer invasão de privacidade quando se trata de obedecer aos caprichos do ditador coletivo.
– Todas as salas deste edifício são monitoradas por câmeras. Você vê? As pessoas pensam que são livres, mas são instrumentos da burrice coletiva.
– Não interessa quem está monitorando, e é essa a questão. Basta ser monitorado para ser diminuído. Monitorar é invadir. Vigilância é agressão.
– E essa entidade cega vai passando a exigir de nós concessões cada vez maiores, até que tenhamos aberto mão de cada um de nossos direitos. Até que as decisões coletivas sejam precisamente tão arbitrárias quanto as do mais caprichoso ditador.
– Em sua forma mais crua o roubo pode ser uma forma de se obter aquilo de que se precisa, mas para a inteligência coletiva roubar é errado, sem exceção. Porém a mesma multidão se deleita em que as imagens e palavras da televisão ofereçam continuamente às pessoas aquilo de que não precisam. O mundo já conheceu contradição maior? É evidente que essa obsessão aberta com o desnecessário é que sustenta o império de ladrões de ambos os lados da justiça.
– Freud foi capaz de prover um mito abrangente o bastante para controlar o indivíduo, mas com o trágico passamento de Deus deixou de existir um mito capaz de controlar os impulsos da multidão.
– E mesmo a herança de Freud, que associamos a uma valorização definitiva do indivíduo, serviu apenas para satisfazer as mais antigas vontades do superorganismo. Na maior parte do tempo, na história da civilização, os loucos andaram à solta, nas ruas e nas casas, promovendo a idéia subversiva de que a loucura pode ser uma forma de lucidez ou uma estranha alternativa à ela. O que fez a psicoterapia? Por um lado, confinou os loucos em recintos isolados, onde não podem encenar a sua subversão. Por outro, o que acontece àqueles dentro da massa coletiva que sentem-se hoje mais sutilmente desviados da norma? Esses buscam voluntariamente a intervenção de terapeutas, de modo a serem capazes de se conformar. Ou seja: os loucos são mantidos fora de cena e os candidatos a loucos estão sendo constantemente monitorados. Os desvios à norma permanecem onde a multidão, que abomina a dissensão e anseia apenas por conformidade, pode controlá-los e anulá-los por completo.
– Enquanto isso as pessoas distraem-se com a ilusão de que discordam sobre assuntos importantes – coisas como o aborto, a natureza do casamento, a guerra ou a pena de morte – e estão cegas para o fato de que concordam em absolutamente tudo. Vão todos para casa nos mesmos carros e trabalham todos para o mesmo fim; são ao mesmo tempo servos fidelíssimos e completos ignorantes daquele a quem estão servindo."
Eu, Rodrigo? Discordo do Brabo em muitos pontos. Concordo em muitos outros. Mais importante para essa coluna: discordo de que “Patrocínio é assim” e de que um dia eu ainda vou aprender. Essa cidade – como todas as outras – é o resultado de quem vive nela. Tem que ser cego, surdo e mudo para não entender isso.