terça-feira, 19 de maio de 2009

Quase Pretos de Tão Pobres*

O aniversário de 121 anos de abolição da escravidão serviu para pensar mais em pobreza do que em escravidão. Não exatamente pelo nosso sucesso no tratamento dessas questões. Primeiro porque a data passou despercebida para muita gente. Depois porque muita gente que ficou sabendo da data, simplesmente não se importou. O mais grave de tudo é que, quando realmente faz sentido, não fazemos a associação entre pobreza e escravidão.

A abolição não foi um processo de inclusão social. Em pouco menos de 40 anos, o tráfico de escravos foi proibido, os filhos de escravos passaram a nascer livres, os escravos acima de 65 anos foram libertos e, com a Lei Áurea, foram libertos todos os escravos. Mas não foram incluídos socialmente. Muito pelo contrário. Por um lado chega a ser romântico notar que a lei tem apenas dois únicos dispositivos: “Art. 1º É declarada extinta desde a data dessa lei a escravidão no Brasil; Art. 2º Revogam-se as disposições em contrário”. Faz a solução parecer simples e definitiva. Por outro lado, o processo era muito mais amplo e grave. Libertar formalmente uma criança de mãe escrava ou um escravo de 65 anos não garante inclusão.

O que aconteceu foi o abandono de grande parte da população. Quando chegou a abolição, o Brasil vivia grandes mudanças. As revoltas contra Portugal; a vinda da corte Portuguesa; a influência crescente da Inglaterra; a criação de bancos, universidades e hospitais; a abertura ao comércio internacional; o surgimento de classes políticas brasileiras; a Independência. Um ano depois da abolição, veio a República. O Brasil e todo o mundo ferviam. A maneira de organizar a produção, a própria sociedade e de ver o mundo estavam em plena transformação. É nesse período que se fortalece a idéia de pagar um artesão para que trabalhe em uma fábrica ou a um lavrador para que trabalhe nas plantações, por exemplo. Se esse pagamento era suficiente para garantir uma vida digna ainda não era uma preocupação. Manter escravos era muito mais caro que pagar mão de obra livre. As pressões abolicionistas se uniram à vontade de ter mão de obra barata.

A inclusão, a exemplo da abolição, não poderia ter acontecido numa canetada. Foram muitos anos até que a escravidão acabasse formalmente e muitos outros até que se tornasse crime. Mas até hoje não deixou de existir. A inclusão poderia, teoricamente, ter acontecido no mesmo ritmo e ao mesmo tempo. Não aconteceu. Os escravos libertos passaram a não ter onde morar, não ter o que comer e nem trabalho conseguiam. Só no dia 13 de maio 1888, estima-se que um milhão de pessoas tenham sido colocadas nisso que hoje chamamos de “mercado de trabalho”. Era 6% da população. Em números de hoje, seriam 11 milhões de pessoas. É o mesmo número de famílias atendidas pelo bolsa-família. Não posso defender qualquer relação entre os números – e duvido que alguém possa – mas é, sem dúvidas, coincidência curiosa. Mas a exclusão também atingiria os alforriados, os idosos e os filhos do ventre livre. Além, claro, dos quilombolas. Muito mais gente e um processo muito maior que uma única lei pudesse tratar.

Até hoje não resolvemos questões básicas de desenvolvimento social. Não conseguimos construir uma sociedade em que todos têm saúde e educação mínimas – mesmo que seja para trabalharem e possam ter remuneração digna que garanta alimentação e moradia. No meio do processo histórico, ainda recebemos grande número de imigrantes europeus o que agravou o quadro. Os menos informados – ou de má-fé mesmo – tentarão mostrar como eles se deram bem enquanto os escravos não progrediram mas nem merecem resposta pela superficialidade da análise. Aos que se ocupam das questões sociais, fica o desafio constante de corrigir distorções históricas e combater preconceitos. Contra negros e contra pobres.

*Da canção Haiti, de Caetano Veloso e Gilberto Gil

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