Bacia das Almas
Já foi dito várias vezes – e, ainda mais vezes, colocado por escrito, – mas escrever é para gente não-resolvida. Quem é verdadeiramente livre e vital não encontra brecha de vida para vaquejar palavras para dentro de uma página.
Todas as artes requerem do oficiante uma dose de auto-obsessão, mas o escritor é dentre todos o mais diretamente absorvido com a sua imagem. O escritor, mesmo quando fala do mundo e dos outros, tagarela apenas de si e para si; ele pode chegar a tornar-se universal, mas apenas na medida em que for fiel à sua obsessão com a auto-elucidação.
Deve ficar claro que não é o fato de ser escritor que o torna obcecado com a sua imagem. O trajeto é oposto: é de fato sua auto-absorção – o ruído ensurdecedor produzido pela sua própria máquina – que o conduz a ser escritor. A precaríssima tese de cada autor é que ele mesmo pode ser, mesmo que por um instante, mais interessante do que o mundo inteiro; é só essa intemperança que o levará a escolher uma vida em que possa tentar impor diariamente a sua supremacia sobre o universo.
E justamente nisso, em que o escritor só sabe se ocupar da sua imagem, é que fica claro o seguinte: escrever é a arte de viver compondo, corrigindo e grifando como gostaríamos de ser lembrados. É desenhar, aprovar e erguer a plataforma de nossa própria justificação.
Enquanto a maior parte de nós contenta-se em viver, o escritor toma as ferramentas da vida como insuficientes para explicar ao mundo quem ele realmente é. O arcabouço do dia a dia – levantar, trabalhar, esquecer, amar – lhe parece vaso insuficiente para saciar a sede da sua autoexpressão. Escritor é o cara que, considerando a vida escassa e acanhada para conter e manifestar a sua singularidade, passa a vida redigindo o seu próprio epitáfio.
É obsessão com a morte no sentido mais negativo e imaturo da coisa. Ou, dito no vocabulário de uma outra mitologia: a letra mata. Essa carga letal não impede, no entanto, que o autor gaste seus dias buscando na palavra um simulacro de vida. É na verdade essa quase-vida, esse paliativo do espírito, que o atrai na palavra escrita.
Já quem pisa o terreno da integridade e da suficiência não precisa, dizem-me, desses subterfúgios.
É portanto muito conveniente e muito elucidativo que a Bíblia tenha sido colocada por escrito, e que o Verbo encarnado – o Verbo encarnado, veja bem – não tenha jamais se inclinado sobre o papel. Em sua condição de texto, a Bíblia denuncia tacitamente a limitação de seus autores, bem como sua rejeição essencial de um mundo não definido pelas palavras e além das palavras contido.
O Filho do Homem, por outro lado, é um cara que existia e que tinha mais o que fazer. Os notáveis escrevem, mas o grandes limitam-se a viver, e nisso são indistinguíveis da gente comum.
Portanto, embora seja esperado que eu mesmo gaste tanto tempo escrevendo, é também paradoxal, porque só chegarão a me conhecer os que não lerem os meus livros – ou os que solenemente os ignorarem.
Talvez ninguém tenha me descrito e me ensinado melhor do que o atarefado Gabriel, que não deve ter ainda sete anos e decretou debaixo do sol de um verão na Toscana: sei vecchio, ciccio e non sai dire nulla: “você é velho, gorducho e não sabe dizer nada”. E disse isso sem afrouxar o abraço que estava me dando, e sem alterar em nada a consideração com que sempre me tratou.
Já foi dito várias vezes – e, ainda mais vezes, colocado por escrito, – mas escrever é para gente não-resolvida. Quem é verdadeiramente livre e vital não encontra brecha de vida para vaquejar palavras para dentro de uma página.
Todas as artes requerem do oficiante uma dose de auto-obsessão, mas o escritor é dentre todos o mais diretamente absorvido com a sua imagem. O escritor, mesmo quando fala do mundo e dos outros, tagarela apenas de si e para si; ele pode chegar a tornar-se universal, mas apenas na medida em que for fiel à sua obsessão com a auto-elucidação.
Deve ficar claro que não é o fato de ser escritor que o torna obcecado com a sua imagem. O trajeto é oposto: é de fato sua auto-absorção – o ruído ensurdecedor produzido pela sua própria máquina – que o conduz a ser escritor. A precaríssima tese de cada autor é que ele mesmo pode ser, mesmo que por um instante, mais interessante do que o mundo inteiro; é só essa intemperança que o levará a escolher uma vida em que possa tentar impor diariamente a sua supremacia sobre o universo.
E justamente nisso, em que o escritor só sabe se ocupar da sua imagem, é que fica claro o seguinte: escrever é a arte de viver compondo, corrigindo e grifando como gostaríamos de ser lembrados. É desenhar, aprovar e erguer a plataforma de nossa própria justificação.
Enquanto a maior parte de nós contenta-se em viver, o escritor toma as ferramentas da vida como insuficientes para explicar ao mundo quem ele realmente é. O arcabouço do dia a dia – levantar, trabalhar, esquecer, amar – lhe parece vaso insuficiente para saciar a sede da sua autoexpressão. Escritor é o cara que, considerando a vida escassa e acanhada para conter e manifestar a sua singularidade, passa a vida redigindo o seu próprio epitáfio.
É obsessão com a morte no sentido mais negativo e imaturo da coisa. Ou, dito no vocabulário de uma outra mitologia: a letra mata. Essa carga letal não impede, no entanto, que o autor gaste seus dias buscando na palavra um simulacro de vida. É na verdade essa quase-vida, esse paliativo do espírito, que o atrai na palavra escrita.
Já quem pisa o terreno da integridade e da suficiência não precisa, dizem-me, desses subterfúgios.
É portanto muito conveniente e muito elucidativo que a Bíblia tenha sido colocada por escrito, e que o Verbo encarnado – o Verbo encarnado, veja bem – não tenha jamais se inclinado sobre o papel. Em sua condição de texto, a Bíblia denuncia tacitamente a limitação de seus autores, bem como sua rejeição essencial de um mundo não definido pelas palavras e além das palavras contido.
O Filho do Homem, por outro lado, é um cara que existia e que tinha mais o que fazer. Os notáveis escrevem, mas o grandes limitam-se a viver, e nisso são indistinguíveis da gente comum.
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Portanto, embora seja esperado que eu mesmo gaste tanto tempo escrevendo, é também paradoxal, porque só chegarão a me conhecer os que não lerem os meus livros – ou os que solenemente os ignorarem.
Talvez ninguém tenha me descrito e me ensinado melhor do que o atarefado Gabriel, que não deve ter ainda sete anos e decretou debaixo do sol de um verão na Toscana: sei vecchio, ciccio e non sai dire nulla: “você é velho, gorducho e não sabe dizer nada”. E disse isso sem afrouxar o abraço que estava me dando, e sem alterar em nada a consideração com que sempre me tratou.
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